2009-01-30

Valsa com Bashir


A memória é o maior tormento do homem.
Friedrich Nietzsche

Se a vida fosse tão simples como nos filmes contratávamos sempre uma equipa de “apagadores de memória” e erradicávamos para sempre as terríveis desfeitas amorosas e todas as outras desavenças vividas.

Mas, o despertar da mente existe na nossa capacidade de criar e recriar a informação perdida na nossa memória e transforma-la em algo tormentoso. Podem ser 26 cães danados ou um repetitivo levantar das águas, mas a memória estará sempre lá a abrir a ferida esquecida.

Foi assim com o massacre de Wiriamu, em 1972, e em muitas outras atrocidades em que jovens militares portugueses participaram sem saber bem como tudo aconteceu. Foi assim, em 1982, no massacre de Sabra e Shatila. Em ambos a inocência que se perdia a cada tiro disparado. Uma maturidade agarrada pelos colarinhos do amigo morto nos braços. Em ambos o doce sabor do esquecimento auto-infligido.

Ari Folman nasceu em 1962. Era criança quando nas colónias portuguesas se matava sem razão. Ou só com a razão de alguns. Era jovem, talvez demasiado criança, quando foi enviado para o Líbano. Com razão? Talvez…

E qual a razão para o completo esquecimento de tudo o que foi vivido naqueles dias? Entre amigos, companheiros de guerra, psicólogos, uma resposta: cada um lida à sua maneira com a dor. Podem ser pesadelos, ataques de raiva, esquecimentos, crises de choro, tudo faces da mesma dor. A de recordar.

Ari Folman terá afirmado que este filme nunca poderia ser filmado com actores. E não podia mesmo. Perderíamos aquela ténue dança entre o mundo onírico e terreno que os traços de David Polonskey e Yoni Goodman souberam criar. Não teríamos os jogos de cores e tons que tão acutilantemente transpuseram ambientes dicotómicos de guerra e paz, selva, cidade e praia, noite e dia, sonho e vida. Mas, continuaríamos a ter o trabalho excepcional de Max Richter, discípulo de Luciano Berio, a criar atmosferas únicas e a transmitir uma imensidão de sensações que nunca trouxeram verdadeiramente paz a Ari Folman.

Uma paz que nunca chega a quem viveu morte e dor. De perto. Mas, pode chegar a redenção e este filme é um pouco disso. Dessa demanda que é muito mais profunda do que uma crise de meia idade de Boaz Rein Buskila e de Ari Folman. Nas conversas, ou desabafos sem divã, com Ori Sivan, o melhor amigo, encontramos a procura de respostas de um país e de uma geração que, tal como muitas outras, se vê arrastada para guerras sem sentido. No conforto das palavras de Ori há um apoio que parece falhar no pragmatismo de Dror Harazi, Shmuel Frenkel ou mesmo Carmi Cna’an. Se todos eles viveram a guerra e vivem-na ainda hoje, cada qual à sua maneira a verdade é que uns vivem com arrependimento, outros com pragmatismo. É exactamente nessa comparação que reside parte do fascínio e beleza deste filme.

Mas, há ainda outro nome que marca esta valsa e mais do que isso a história recente de Israel. Com a inversão dos papéis, em que entrevistador é entrevistado, temos acesso à visão de um homem que esteve por perto do massacre e dos círculos de poder e decisão. Nas entrevistas com Ron-Bem-Yeshai há a culpa de um povo que não se pode desculpar com a ingenuidade dos jovens que a tudo assistiram sem nada fazer. Mas, há também uma imputação de culpa a Ariel Sharon e à forma como o poder político fechou os olhos ao massacre naquela noite. A mesma culpa que o mundo ocidental partilhou aquando do genocídio do Ruanda e dos crimes no Kosovo, os quais Ron Yeshai sempre assistiu e sempre testemunhou para não deixar esquecer.

Para não deixar esquecer e para que tudo não passe de uma “longa excursão” pela qual passamos feitos mortos-vivos temos aqueles últimos momentos. Sem animação. Apenas a cruel realidade dos sem memória tirada dos arquivos.

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