2012-03-23

buzica


a espuma do mar há horas que banhava o cabelo desgrenhado e a barba rebelde que sobressaía da sua face queimada e matizada pelo sal e sol. aquela cadência ritmada das ondas, qual compasso de maraca num slow de bossa-nova algo manhoso, transmitiam-lhe uma sensação de paz e relaxamento que até aí não tinha experimentado.

fazia longo tempo que não sentia terra firme. o suave e relaxante granulado da areia, ele que sempre se sentiu como um grão. ele que avesso a individualidade, sempre se sentira em interacção com tantos outros iguais ali naquela praia. como que desprovido de valor ou qualidade em especial. como um átomo.

mas ao mesmo tempo, um estranho vazio o acometia. como o interior dum átomo, assunto sobre o qual as normais pessoas tendem a não pensar, tendendo a desconsiderar ou menosprezar. desconhecendo assim que nesse suposto vazio acomodam-se electrões e protões que dão ao átomo uma característica única. como que a provar, que na mais completa discrição ou homogeneidade, há sempre espaço para o diferente. para o particular. para o individual.

um respaldo de onda mais forte, fez com que abrisse os olhos.

estava numa praia. paradisíaca. em terra firme, como o seu sonho.

levantou-se lentamente. estava extenuado e farto de nadar sem rumo. farto de numa suposta quebra de rotina, acabar por ser falsamente induzido numa outra. porventura pior. porventura mais perigosa.

ainda assim, tinha forças para começar a deslocar-se.

um pé a seguir ao outro. lentamente. como que movido por uma força interior. algo seu. do seu querer. que provinha do interior que julgava vazio e seco. como que a responder às reacções e a choques dos seus electrões e dos seus protões.

após ganhar uma certa cadência, diria até mecânica, vislumbrou no meio da praia, um estranho mas atraente X gigante.

sempre fora um pouco céptico a tais veleidades beneméritas que lhe pudessem ter ocorrido. não por questão de orgulho, mas por algo que nem ele sabia explicar. afinal de contas não há almoços grátis, pensava ele. adiante.

mas achou realmente estranho o facto de estar intacto.

embora céptico, resolveu aproximar-se.

ao chegar, notou que ali estaria algo enterrado. algo escondido. com tal X gigante era impossível não pensar nisso. e como tudo o que não está à vista, logo imaginou no que poderia estar ali contido. ali debaixo de todos aqueles indistinguíveis mas suaves e relaxantes grãos de areia.

escavou.

e escavou.

com todas as suas forças escavou.
de repente deu com uma pequena caixa. ao contrário de todas as normais e robustas arcas de tesouro, esta era bem frágil. estranhou.
mas ele também não era o Barba Ruiva e aquilo também não era a ilha de Tortuga.

resolveu abri-la.

e ao contrário do imaginado, dentro não existia mil e um tesouros, mas sim um pequeno grão de areia. um pequeníssimo grão de areia. uma "buzica" de areia, carinhosamente pensou ele.

aquele não era um grão impessoal, igual a todos os outros que tinha até aí encontrado.
não.

surpreendia-o a sua elegância e a estranha sensação de conforto que transmitia. e tinha personalidade. não era um mero grão de areia, mas sim a sua "buzica" de areia.

algo que tinha o condão de dar-lhe uma resposta a muitas das suas dúvidas que até aí o acompanhavam, na exacta proporção inversa do tamanho do mesmo.

um simples grão de areia. algo que ao longe se perdia na aparente homogeneidade e rotina que era aquela praia da vida.
algo frívolo e trivial para o comum dos mortais, como um grão de areia.
porém e ao mesmo tempo com uma imensa personalidade própria.

era assim possível ser algo que, não tendo sempre de ponderar os prós e os contras, agiria quando tal fosse necessário.
não tendo algum tipo de pressão para completar grandes feitos. ou para almejar algo. algo que o reconfortava, ele que sentia uma pressão castradora que estupidamente o inibia.

daí a necessidade de apelo ao interior. e deixar que os electrões e neutrões chocassem, esperando que daí resultasse o impulso que finalmente necessitava.

a "buzica" de areia não o sabe, mas a sua presença tinha mexido com o interior do Crusoé em questão. efeito acendalha, despertando forças interiores, que até aí ele não sabia que existiam. ou melhor, que não se recordava. tinha estado seco durante muito tempo. porventura inibido.

mas fiel à sua personalidade, esta "buzica" de areia não se remeteu a um papel passivo.
também ela continha dentro dentro de si forças que a empurraram para fora das mãos do Crusoé.
ou terá sido a passividade e inabilidade natural deste último que provocou tal separação?

o certo é que esta caiu na massa impessoal do imenso banco de areia. e ainda que se destacando dos restantes, ao algo pitosga Crusoé, à distância que estava, custava-lhe encontrar a mesma.

obviamente que a uma formosa e peculiar pequena forma, seria bem fácil fazer-se destacar naquela aparente e homogénea massa de areia.

teorizo então que porventura não quereria ser encontrada por uma pessoa que mesmo contendo algumas qualidades que apreciava - pelo menos nos breves momentos que esteve em contacto com a mesma - soava-lhe instável e tão pouco crente em si.
e todos sabemos que ninguém quer ter ao seu lado alguém com falta de confiança própria.

por outro lado e para ser justo, deduzo que o calejado e extenuado Crusoé, ainda que ciente que por vezes valeria a pena arriscar, não quereria ocupar indevidamente o lugar de outra pessoa, de outro naufrago que viesse a desembocar naquela praia.
e é bem verdade que todos nós, a dada altura, nos sentimos perdidos.
mas na realidade, notamos que uns acabam por ser mais centrados que outros. reagindo assim de forma diferente. às tantas devido às tais forças interiores que já aqui falei. e pese o conforto e segurança, porventura o Crusoé tinha ainda assim medo de falhar.

mas assim esperaria que outra pessoa aparecesse e estimasse como devido, aquele pequeno, formoso e calmante grão de areia, a que carinhosamente tinha designado de "buzica".
ainda que no seu íntimo, imagino que quisesse ser ele o escolhido. como que a apelar a uma reactividade quando esta era uma época de proactividade.

lamento, mas não sei o final desta história. aliás, creio que há vários finais possíveis, mas o indesmentível é que aquela ligação e conexão existiu ou existe. gosto de pensar que como um ying e como um yang. estando juntos ou não.

igualmente indesmentível, é que por estranho que pareça, aquele pequeno e simples grão de areia, marcou para sempre aquele homem. como que a mostrar que, por vezes, existem pequenas coisas às quais nada damos importância ou de quem nada esperamos, mas que de repente podem deixar a sua marca indelével. como uma assinatura em tinta chinesa.

mostrando que no nosso interior há algo mais que vazio. estas colisões só têm é de ser direccionadas. ainda que num equilíbrio digno de um trapezista sem rede a 40 m de altura. só com este equilíbrio, só com esta conjugação de camadas, é possível exponencial todo o seu potencial.

e naquela praia, naquele dia, para aquele homem, a "buzica" de areia foi capaz de almejar tal desiderato.

afinal Portugal é parecido à Grécia.






vergonha.