Intro em Lá maior. Dó menor. Dó menor. Mi menor. Mi menor. Sol menor. Sol menor. Mi maior. Mi maior. Dó maior. Dó maior.
As primeira notas de Danúbio Azul. A música que melhor define a Valsa. Ou melhor. Aquilo que a esmagadora maioria das pessoas associaria a este género musical. Até para mim, um completo leigo na matéria. Gizada do génio de Johann Strauss II. Uma pessoa de rasgo. De vida cheia de acasos e ocasos. Com glória. Com depressões e esgotamentos. De posições políticas bem vincadas. Uma pessoa bem controversa ao seu tempo.
Valsa, a erudita e ritmada valsa. De compasso binário composto. A sublime e muito nobre Valsa. Inspirada em simples danças campestres alemãs e austríacas, que provindo de contextos e meios sociais mais baixos, depressa se tornou objecto de culto entre as elites, em especial na ainda púdica Viena dos séc. XVIII e XIX. Como alguém que sobe a pulso, aqui na hierarquia dos géneros musicais.
Javier Marías, numa frase tantas vezes citada, escreveu uma vez que o "futebol é a recuperação semanal da infância". Nada mais correcto.
Numa das primeiras memórias televisivas que tenho, na saudosa RTP-Madeira, num tempo ainda jurássico com apenas um canal - que começava a meio da tarde - recordo um curto clip de vídeo. De futebol. Em slow motion. Ao som de Danúbio Azul de Strauss. Que passava nos intervalos de jogos e eventos desportivos, porventura colmatando a ausência de publicidade. Memórias de um tempos em que ainda havia espaço para estes escapes, algo que a posterior "eucaliptação" publicitária acabou por asfixiar. Adiante.
Recordo uma imagem de forte contraste e imensa luz. Um enorme relvado. No centro uma enorme sombra, sobre o meio campo, como que um religioso presságio ou profecia, introduzia elementos que nos preparavam para o milagre que iria acontecer. Como pano sonoro de fundo, a valsa de Strauss conferindo o devido sentido épico ao momento.
Convém desde já esclarecer que o termo valsa provém do alemão Walzen, que em tradução livre significa girar ou deslizar. Dar voltas.
Quartos de final do México'86. Estádio Azteca, na capital mexicana. Epicentro de um encontro que se adivinhava quente e destrutivo. Um Argentina vs Inglaterra, tal e qual o forte terramoto ocorrido no México um mês antes. O primeiro encontro entre as selecções dos dois países, desde a disputa sobre as ilhas Malvinas. Ou chamar-se-ao Falkland?
Intro em Héctor Enrique. Um toque na bola. Passa Peter Beardsley com rápido toque para outro pé. Finta de corpo e terceiro toque passando Peter Reid. Quarto toque. Quinto toque. Golpe de anca. Passa "Terry" Butcher ao sexto toque. Sétimo toque. Finta Terry" Fenwick. flexão para direita. Oitavo toque entre "Terry" Butcher e saída de Peter Shilton. Nono toque. Entrada de "Terry" Butcher. Baliza aberta. Golo.
Há 25 anos, amparada e quem sabe, abençoada por uma prévia Mão de Deus, outro momento sublime foi composto. Uma nova composição musical acabava de ser criada. Chamaram-lhe "O Golo do Século". Pelo maestro Maradona, o pobre miúdo de Vila Fiorito. O inconstante e politicamente incorrecto Maradona. Pessoa capaz do melhor e do pior. Uma pessoa cujo nome equivale quase sempre a controvérsia. Uma pessoa que sempre viveu no limite. Naquele relvado, como de uma pauta musical se tratasse, compõe um sublime momento de arte. Um rasgo de criatividade apenas possível a poucos predestinados. Aos maiores. Como Strauss. Naquele relvado, deslizando e girando por entre adversários, Maradona como que cria a sua própria escala musical entregando uma peça de arte para a posteridade.
A partir daquele momento, Futebol - sim, com F maiúsculo - equivalia àquele golo de Maradona. Fosse ali no gigante estádio Azteca, fosse no pequeno beco junto à minha casa, onde se tentava a muito custo transpor, para aquele bocado de alcatrão e cimento, toda a magia que ocorreu naquele 22 de Junho de 1986.
A partir daquele momento, aquele golo de Maradona, passou a ser algo mais que uma mera obra-prima. Se por um lado, contém todo o génio e talento que apenas está ao alcance de alguns escolhidos, por outro lado, o mesmo irrompe no humano e imperfeito Maradona. Egocêntrico até. Capaz da maior gargalhada. Capaz de verter lágrimas. Como que mostrando que há uma camada interior cheia de criatividade. Em permanente combustão. O chamado rasgo. Algo difícil de encontrar. Que no caso de Maradona se manifestou no Futebol. Daí e por tudo o que representa, ele será o maior.
OK. Temos o quase extraterrestre Messi - que nasceu um ano e dois depois deste feito. O imperturbável e pacato Messi. De quem se desconhece grandes desvairos ou incongruências. Alguém atípico. Sem o "salero" mediático que se exige aos predestinados. Embora ele seja um deles.
Que alimenta e alimenta-se do autêntico Deep Blue futebolístico que é este Barça. Algo que nem o génio do igualmente humano e imperfeito José Mourinho, parece contrariar. Mas para mim e numa típica comparação entre o El Pibe e a La Pulga faltará sempre algo mais. O tal lado imperfeito. Faltará igualmente conseguir comandar a Argentina a algo grande. Até porque aquele Nápoles não é este Barcelona. Ou fazer aquela brutalidade nuns quartos de final de um campeonato do mundo, num jogo com aquela carga emotiva contra a Inglaterra, não é o mesmo que fazer igualmente magia, numa meia final da Taça do Rei contra o Getafe. Aos que não crêem, e citando o maior "que la chupen, y que la sigan chupando". Mas estas são outras conversas que agora não interessam.
Aquele foi igualmente o dia da vingança argentina. Qualquer argentino diria que se justiça divina houvesse, a mesma teria acontecido. Ali naquele relvado. Onde se jogava mais que um simples encontro de futebol, pese os intervenientes negassem isso. Ali, Maradona, assumia o papel de marechal guiando as suas operárias tropas à conquista de um segundo título mundial. Numa equipa orgulhosamente só. Para gaúdio popular de um depauperado país. Um ligeiro e efémero conforto, na altura dura realidade argentina. Mas com toda lisura desportiva possível, sem as trapaças do ocorrido no vergonhoso Argentina'78. Digo possível, porque minutos antes, a mão de Deus fora nas palavras de Robson meramente a mão de um patife. Creio que o termo correcto foi "the hand of a rascal".
Mas por vezes "os fins justificam os meios" diria sem qualquer pejo qualquer Sun Tzu, Maquiavel, Lenine ou mesmo algum Kissinger de pacotilha. A história igualmente encobre estas falhas. Chamam-lhe realidade. E os patifes e as patifarias por vezes são necessárias. Em nome de um bem maior. Algo que é reconhecido, mesmo por idealistas convictos. Adiante.
Gostaria de ter começado estas linhas, escrevendo que tinha presenciado in loco aquele fantástico jogo e em especial aquele momento. Que tinha sido um dos 107.000 espectadores presentes naquela autêntica sagração de um mito.
Mas não.Tomei o primeiro contacto com aquele vídeo alguns anos depois. Mas pese essa distância, passou a estar na minha memória como algo que nunca mais esquecerei. Minha e de outros amigos meus. Companheiros de longas tardes de futebol, que se prolongavam até ao raiar da luz. Todos na ânsia de interpretar aquela pauta e aquela composição feita naquele dia, no estádio Azteca. A tentar imitar o inimitável. A pretender alcançar aquele patamar. Ao dito rasgo criativo. A tentar ser um Strauss. Um predestinado.
Acredito piamente que todos, temos em nós contido este rasgo. Mas a esmagadora maioria das pessoas nunca chega a descobrir ou explorar o mesmo. Imposição da rotina, sempre a rotina dirão alguns. Outros por desconhecimento da área a investir - muitos dedicam-se numa eterna busca, muitas vezes em vão. Outros ainda por pouca capacidade de motivação-barra-trabalho.
Mas esta busca, deve a meu ver, ser permanente. Não por qualquer mania ou fixação na "especialização" - algo que abomino um pouco, mas por uma questão de bem estar que daí se gera. Na alegria que se via na cara de Maradona quando tinha a bola. E já agora na de Messi - que só aí deixa cair a sua máscara de "imperturbável".
A melhor prenda que recebi este Natal foi uma placa com a dita jogada - embora o habitual par de peúgas dado pela minha tia tenha sempre um lugar especial. De uma grande revista chamada "11 Freunde". Onze amigos. Como se uma partitura tratasse. Uma Valsa. Talvez o Danúbio Azul. Que me remete para a minha infância e para aquelas tardes. Como que a recordar que todos nós temos um rasgo escondido dentro nós, à espera de ser explorado.
Poderemos não ser predestinados. Não se pretende isso. Mas essa busca deve ser explorada e incentivada. Método tentativa-erro. O rasgo existe e por vezes merece que seja conhecido. E visto. Seja em que área for. Aquela jogada, naquela quente tarde em Junho de 86 vem precisamente comprovar isso mesmo.
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