Li algures, perdido por entre folhas e cadernos dispersos, num sítio que agora não me ocorre, o relato escrito de alguém que observava um gato.
Sim, um simples gato. Mas não um de qualquer estirpe ou comum casta. Esquivo, com o seu andar petulante como a generalidade dos felinos, este era um gato que ao invés dos seus companheiros, transparecia que nunca iria abdicar da sua liberdade pelo conforto.
Lá se encontrava ele, altivo, sob o sol abrasador, na sua jinga que tanto era sexy como arrogante, que sobre um zinco escaldante se bambaleava, como se aquele anexo inacabado e claustrofóbico de um qualquer bairro social da periferia, fosse os largos e arejados Campos Elísios ou a sempre vibrante e cosmopolita 5ª Avenida nova-iorquina.
Indiferente aos apelos do seu dono, o gato mantinha-se impávido e sereno. O dono, outrora uma pessoa outrora vibrante e cheia de vitalidade, sempre orgulhosa de ter nascido no dia 18-06 - não me perguntem porquê, pois nem o dono sabia essa resposta - agora, com a sua voz rouca, porventura a denunciar um cansaço e um desespero próprios de quem cada vez mais acreditava menos ser possível fazer poker no jogo da vida, clamava em vão pelo gato. Este mantinha-se no seu forte, na sua autêntica torre de marfim, vincando assim toda a sua independência e mostrando assim não ter quaisquer laços atados a ninguém ou a algo. Como que marcando uma posição ou statement.
Uma liberdade que esse observador secretamente desejava, ainda que conscientemente pudesse nem ter essa percepção. Ter a oportunidade de ser aquele gato, naquele zinco, naquela hora, transportando-se assim para todo aquele imaginário de liberdade e independência. Uma fuga da habitual e monótona rotina - sempre a rotina - que, como invariavelmente acontece, muitas vezes nos acaba por induzir e prender até um ponto de quase-sufoco. A generalidade das pessoas, nem se dá conta de toda esta maquinação, tão embrenhadas que estão nessas mesmas rotinas. Mas este alguém felizmente estava. E se as rotinas são muitas vezes precisas, não é à toa que com igual importância, as rupturas são necessárias. Serão assim o intervalo entre as rotinas. Como autênticos escapes. Ponto final. Muda parágrafo.
Imaginemos que o dono do gato, tinha igualmente um cão. Que como todos os canídeos era fiel e leal. Até ao tutano. Ainda que diferentes, os mais variados laços juntavam cão e gato, como que completando-se numa estranha e talvez contranatura sinergia - pelo menos aos olhos de alguns - qual yin yang. Ou neste caso como Oddie e Garfield.
Se esse alguém olhasse o cão, certamente o catalogaria de de sisudo e obtuso. Afinal de contas era reactivo. Quase pedindo desculpa por qualquer latido solto fora contexto. Um ser que respondia aos estímulos do agora frágil dono, não ousando sequer o enfrentar, ainda que secretamente por vezes assim o desejasse. Por uma questão de respeito.
Mas acreditemos, por momentos, que esta visão estava toldada pelo sufoco sentido por esse observador. Afinal de contas o cão, também teria o seu lado rebelde. Solto, como um cão na pradaria - não confundir com um cão da pradaria que na realidade é um roedor. Que se esconde em túneis. Este pelo contrário, preferia enfrentar as coisas de frente. E admirava acima de tudo frontalidade. Ainda que tendo postura diferente do gato, acabava por ser em tudo muito semelhante a este, ao mesmo tempo que o admirava, buscando inspiração neste, numa estranha e porventura disfuncional relação pupilo-mestre - isso sim nada saudável.
Mas àquela distância, comparado com o vibrante e atrevido gato, o cão na sua fidelidade e lealdade inquestionáveis, parecia um mórmon no meio de um Mardi Gras. Um Luís Filipe num plantel do Benfica. Algo tão mais ou menos. Sem o "salero" necessário. Sem a atitude sexy que sempre se quer e deseja - ainda que muitas vezes seja meramente uma miragem e uma projecção do que realmente almejávamos ser. Um ser que realmente poderia dar asas à sua imaginação. Como o observador desejava.
Compliquemos ainda mais a história. Nova linha narrativa na história - uma mais. Imaginemos que o dito dono morria. Pese tão parecidos, o elo de relação entre o gato e cão desaparecia. Após uma saída extemporânea do gato, o frágil dono tinha sucumbido.
Mayhem. Terramoto de 1755. Inferno de Dante elevado ao cubo. O mundo caia sobre a cabeça do cão como uma maçã caíra sobre a cabeça de Newton.
A analogia não é inocente. Aliás nada neste texto é. Ou talvez não. Adiante. Tudo tem um sentido. E simplesmente há coisas que porventura tinham de acontecer. Como uma básica lei da vida. Como a lei da gravidade que de tão óbvia nem a questionamos. Pese para mim seja positivo a existência de sentido crítico a leis dadas como imutáveis.
O cão numa primeira fase tudo tinha lutado para que o gato ficasse junto de si. Mas as coisas já não estariam destinadas a tal. Faltava a ligação. Ainda que céptico a esoterismos relacionados com predefinições de destino, o cão no seu interior sabia que o desejo de liberdade do gato era mais forte. E admirava e respeitava imenso isso. Assim como toda a frontalidade como a situação se desenrolou.
Como previsto, o gato esse seguiu o seu caminho. Corajoso, fez uma escolha que poucos fariam. Para gáudio do cão, que mesmo sentido, no interior não deixava de invejar a coragem e confiança mostrada. Preferiu o desconhecido ao conhecido.
O cão esse, às tantas vagabundeou um pouco por aí, como antes já o tinha feito, ele que fora recolhido pelo dono. Nada a que já não estivesse acostumado antes de conhecer o gato. Sempre tivera uma queda para o drama. Algo que a relação agora desfeita o tinha ajudado a minorar. Urgia corrigir novo desequilíbrio. Algo que um L Casei Imunitass chamado tempo iria provavelmente curar e repor. Como um lastro que após uma tormenta, ajuda lentamente a estabilizar um barco - algo que provavelmente ainda não estará realizado.
No entanto, o cão sabia que a ligação era especial. E sabia que mesmo na sua aparente deriva libertária, o gato estaria sempre ali para ele, assim como ele mesmo estaria ali para o gato. Não era à toa que gostava tanto do gato.
Algo imperceptível para a esmagadora maioria dos outros, fossem eles gatos, cães, canários, ratos, papagaios ou peixes. Era algo que apenas ele e o gato sabiam que existia. Algo que estaria sempre personificado no dia 18-06.
Regressemos ao observador-escritor de onde retirei a história inicial. Não sei que sentido daria a esta história. Aliás, não sei se sequer se revê em algum destes papéis, ele que naquela altura, naquele local, quereria ser o gato. Mas pressupondo que sim, espero que tenha conseguido sair do sufoco e que tenha abandonado as rotinas que às tantas o aprisionavam. Segundo o meu gato, prevendo que seja como o mesmo, com certeza conseguirá chegar e alcançar tudo aquilo que se propõe. Terá as qualidades inatas para tal. Não é à toa que era especial o gato. Assim como certamente terá sempre um cão, que estará sempre a velar por si. Poderá estar mais ou menos atormentado (por razões que às tantas nem se deverão ao gato), mas estará sempre a zelar pelo dito gato. Mesmo sabendo que o tempo não pode voltar atrás - na esmagadora maioria das vezes o mais acertado e sensato. Tal como a lei da gravidade que quase nunca é questionada.
Mas esse 18-06 existe e permanece. O cão agradece essa recordação, pois representa muito mais que que uma simples ligação. Chega assim ao âmago da data em questão. Assim como certamente gosta de pensar que do outro lado, o gato também sentirá o mesmo.
Obrigado, Celeste Caeiro
Há 7 horas
1 comentário:
Gostei do conto. Parabéns.
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