Era mais do que ganhar um jogo, era mais do que deixar os ingleses fora do Mundial. nós culpávamos os jogadores ingleses pelo sucedido, por tudo o que o povo argentino tinha sofrido. Eu sei que parece uma loucura, um disparate, mas isso era o que sinceramente sentíamos. Era mais forte que nós. Estávamos a defender a nossa bandeira, os jovens mortos, os sobreviventes... É por isso que julgo que o meu golo teve tanta transcendência. Na verdade tiveram os dois; os dois tiveram um sabor especial."
Diego Armando Maradona, Eu Sou El Diego (p.135)
22 de Junho de 1986. Estádio Azteca na Cidade do México. Quartos de final do Mundial'86. Um escaldante Argentina - Inglaterra, quatro anos após a guerra das Malvinas. Ou chamar-se-ão Falkland? Não interessa.
O que interessa reter é que pese todos os intervenientes o negassem, aquela partida tinha uma carga simbólica que ia muito mais além do que um simples jogo de futebol.
Quatro anos antes, e norteadas pela necessidade de consolidação dos respectivos regimes políticos - o interesse estratégico das ilhas era quase nulo - os dois países tinham-se envolvido na disputa de um conjunto de ilhas rochosas e semidesérticas situadas a menos de 500 km da costa argentina, em pleno Atlântico Sul, num conflito que durou cerca de 74 dias e provocou 907 baixas, das quais 649 foram do lado argentino e 258 do lado inglês.
O conflito decorreu envolto num alto clima de exaltação nacionalista em ambos os lados. A junta militar argentina basicamente usou o conflito para legitimar o seu poder, e o partido conservador de Margareth Thatcher no auge da sua ânsia reformadora liberal que tantas forças resistentes estava a encontrar, encontrou neste conflito uma escapatória para consolidar a sua liderança por longo tempo, algo que a (previsível) vitória permitiu.
Ainda que a derrota tenha precipitado o início da queda da junta militar que governava de forma opressiva a Argentina há já algum tempo a essa parte, o facto é que a humilhação que a derrota provocou no forte ego argentino, foi algo que nunca foi verdadeiramente esquecido.
Naquela tarde, naquele relvado, tratava-se muito mais que um jogo de futebol. Aliás, desconfio mesmo que para a maioria dos argentinos, ganhar à Inglaterra naquela tarde seria bem mais importante que conquistar o título de campeões do mundo. Algo que mais tarde, Maradona e muitos outros viriam a confirmar. É verdade que o jogo é recordado pela mão de Deus. E pelo 2º golo - o melhor do século - que o Deus Maradona marcou. Essas efemérides são mais que conhecidas. O que não é muito tido em conta, é que ali estava em jogo muito mais que um campeonato ou quaisquer honrarias. Estava em causa sim, a honra e o orgulho ferido de um país que se sentia injustiçado.
"Não podemos comparar futebol com política. É uma má ideia misturá-los. É apenas um jogo. Vamos jogar e desfrutar, mais nada (...)
(...)Somos 23 jogadores, mais a equipa técnica e o resto do staff, mas não jogamos só por nós. Jogamos por todo um país, por 11 milhões de pessoas que na Grécia estão à espera de um sorriso, por alguma boa razão para sair à rua e celebrar. Creio que o conseguimos contra a Rússia e ficamos mesmo contentes."
Giorgos Samaras, conferência de imprensa diária da selecção grega (19-06-2012)
22 de Junho de 2012. Arena de Gdansk, na cidade polaca do mesmo nome. Banhada pelo Báltico. Uma das cidades da chamada Liga Hanseática, aberta por natureza, por influência da sua grande tradição comercial. Cidade que transitou por vários impérios, preservando sempre a sua independência e esse livre espírito. Uma cidade que fiel às suas tradições, foi berço do sindicato solidariedade de Lech Walesa, o movimento que provocou o início da derrocada e progressiva abertura do regime comunista na Polónia assim como outros regimes no até então chamado bloco de leste.
Uma cidade que nos últimos 200 anos esteve baloiçar entre o domínio polaco e o domínio alemão/prussiano. A cidade direi ideal, para receber o previsivelmente escaldante Grécia - Alemanha destes quartos de final do Euro'2012.
Olhando ao contexto político-económico que actualmente se vive na Europa, é impossível ficar indiferente a este confronto e não extravasar o mesmo para fora das quatro linhas. Os devedores contra os credores. Os media gregos já designam a partida pela "A mãe de todas as batalhas".
O norte rico contra o sul pobre.
Numa altura em que que todos os olhares estão na delicada situação grega, a austeridade "über älles" defendida pela chanceler e apoiada pela maioria da opinião pública alemã, assim como declarações (estapafúrdias) como as de políticos e altos dirigentes alemães que defenderam ideias como a Grécia ter que abdicar da sua soberania em certas matérias ou mesmo vender território (ilhas) para pagamento de empréstimos contraídos, criaram um clima de forte contestação e muitos anticorpos anti-alemães no povo grego.
Por outro lado, o comum contribuinte alemão sente-se farto daquilo que considera ser um festim desregulado, a maneira como certos países não têm controlado os seus défices orçamentais.
Ainda assim, para os Gregos, a partida será sempre bem mais que um jogo. O povo grego procurará que uma vitória sirva de alguma espécie de vingança. Um ligeiro lamber de feridas, mesmo que por uma noite, mesmo que passageiro, sobre a terrível sensação de humilhação nacional a que julgam estar a ser submetidos. Arrisco que ganhando à Alemanha, a maioria do povo grego achará secundária a eventual conquista de um hipotético (2º) campeonato da Europa.
Não deixa de ser engraçada a feliz coincidência das datas.
26 Anos depois, este também não será com certeza mais um mero jogo duns quartos de final de uma grande competição.
Claro que o desnível de forças em termos futebolísticos é considerável - bem mais que o existente na altura entre a Inglaterra de Lineker e Shilton e a Argentina de Maradona e Valdano. Esta Alemanha é clara candidata ao título. A Grécia nem ao perto lá chega - se bem que há 8 anos provou que nada é impossível.
A Mannschaft é equipa que gosta de dominar e explanar o jogo. Pelo contrário, esta é uma Grécia em transmutação. Não será a Grécia na retranca de 2004, mas não deixa de ser a equipa que menos remates fez na competição até este momento (19). Menos que Cristiano Ronaldo (21). Nem Karagounis, a ainda grande figura da equipa - nem jogará - é Maradona.
No entanto, tenho a certeza que será mais que um jogo. Assim como no seu íntimo, pese as palavras de Samaras, os jogadores estarão a interiorizar toda esta involvência. Do lado grego, 11 milhões de pessoas assim o exigem.
Racionalmente e em condições normais, a Alemanha ganhará o jogo. Aliás, traçando um paralelismo, até a via política pró-troika acabou por levar a sua avante nas recentes eleições gregas.
Mas a capacidade de superação e abnegação nestes momentos, podem fazer a diferença. Há 26 anos atrás, isso foi bem visível. E neste caso, até já temos um belo exercício de futurologia feito pelo pelos Monty Python, onde a escola grega acaba no fim por se sobrepor ao racionalismo e ética alemãs.
No futebol, como em outros campos da vida, temos sempre a tendência de torcer pelo mais fraco. E o "beautiful game" é precisamente belo, porque em campo são onze contra onze. Ainda que Lineker tenha acrescentado "que no fim ganha a Alemanha".
Veremos sábado.
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