"Os benfiquistas andam fartos do futuro. A culpa é, evidentemente, do próprio futuro: promete que vem, mas nunca mais chega. É desagradável. E o presente, infelizmente não nos entusiasma. Que ganhou o Benfica este ano? Um triste troféu, e nada mais.(...)"
Ricardo Araújo Pereira in A Bola (Chama Imensa/2007)
Há algo de irracional na maneira como abordamos algo tão trivial como o futebol. O momento em que estas palavras são escritas, são exemplo disso mesmo. Hoje [dia da eliminação do Benfica em Braga] o Custódio abriu uma ferida Sensini. Referi Sensini?...Outra vez o Sensini... Um pouco perdidos? Passo a explicar.Ricardo Araújo Pereira in A Bola (Chama Imensa/2007)
Dentro da enorme irracionalidade que só o futebol permite, uma pessoa que goste realmente do fenómeno acaba - como qualquer outra pessoa que tenha especial apetência por outro assunto, embora permitam-me a boçalidade de não estar a ver algo mais importante que o futebol dentro desse conjunto de trivialidades permitidas [opinião nada imparcial reconheço] - neste contexto por associar bons e maus momentos, que irão sempre servir de espécie de bengala mnemónica ao longo da sua vida, constituindo autênticos marcos no percurso de vida de uma pessoa.
(exemplo ficcional)
"- Quando é que o teu filho Óscar nasceu?
- Num domingo, dia 7 de Maio de 2010.
- Dia 7 de Maio? Data não me é estranha...
- Pá, o dia em que o Benfica conquistou o último campeonato. Já viste isto?
- Pois pá, Benfica 2 Rio Ave 1. Com bis do Tacuara. Daí o nome! Fodasse que espectáculo!
(em uníssono batendo palmas)
- Tomem cuidado/que ele é perigoso/ele é o Óóóscar Tacuuuara Cardozooo//Tomem cuidado/que ele é perigoso/ele é o Óóóscar Tacuuuara Cardozooo."
Adiante. Estes autênticos milestones acabam por ser associados a fases boas e a fases más. Evocando memórias felizes ou infelizes. Ou pegando em terminologia própria, variando entre os chamados períodos com estrelinha, onde num golpe de asa e num último instante, tudo corre bem em contraponto com os períodos de blackout em que o último passe teima em não sair.
Relembramos o 1-3 em Highbury Park, o mítico 3-6 em Alvalade - num jogo em que me mantive estoicamente em frente à televisão, na minha sala esticando um (agora velhinho) cachecol do clube, acção que foi a força extra que contribuiu, pensei eu na altura, para tão desnivelado resultado - como um verdadeiro 12º jogador, estando realmente lá dentro de campo - isto frente a um dos melhores Sporting que tenho memória. Relembro igualmente o mítico e excitante 4-4 em Leverkusen. Ou o satisfação e o sorriso que expressei depois de ver o beijo de Sabry na bola ao minuto 89, numa autêntica vitória de Pirro em Alvalade, adiando por uma semana a conquista do campeonato pelo eterno rival. O prazer de estar entre mais de 100.000 pessoas no último derby com toda a imponência do velha Catedral. O ambiente vivido no 2-1 frente ao Manchester United ou o salto que dei da cadeira ao ver aquele autêntico míssil teleguiado do Simão no mítico - sim, vou cometer essa heresia - Anfield Road.
Mas nem só boas as recordações são associadas ao jogo que todos amamos. O inverso também acontece, numa esquizofrenia e num maniqueísmo tão típicos do futebol, a eterna dualidade vitória/derrota.
Nos maus momentos, o adepto - que tende a considerar muitas vezes, as façanhas ou dos desaires do seu clube preferido como uma questão de vida ou morte - encaixota essas más memórias, aqueles momentos em que infantilmente se sente como que trespassado em toda a sua honra e moral - como se uma grave devassa tivesse sido perpetuada - colocando-as num canto escondido e obscuro, bem dentro do autêntico sarcófago que é a sua memória.
Esta recordação ficará porventura imóvel e anestesiada, até que novo desaire ou novo cataclismo aconteça - sim, desenganem-se aqueles que pensam que, tal como no amor, a entrega a um clube torna-nos imunes a tudo e não dá azo a desilusões, numa espiral que direi quase perpétua. Afinal de contas, não existem equipas imbatíveis e a derrota acaba sempre por acontecer.
Há 17 anos atrás, com 11 anos, sentado no chão do quarto de um grande amigo meu [bob] - que curiosamente não é fã do jogo e até consegue ter uma visão bem equidistante do fenómeno [como é que é possível questiono-me eu] - encontrava-me a chorar a eliminação do Benfica.
Durante muitos anos, nunca mais me ocorreu isso. De facto o nosso cérebro tem o condão de nos proteger das más experiências e das más recordações. Só para dar um exemplo, ainda hoje tenho dificuldades em me recordar qual o treinador que sucedeu a Toni no comando técnico do Benfica em 94.
Recordo agora que quando o jogo acabou estava de rastos. O Parma de então, uma espécie de Villarreal ou Hoffenheim da década de 90 - típico pequeno clube de uma pequena localidade suportado por um endinheirado magnata industrial - tinha nomes como a excêntrica estrela colombiana Asprilla - o Polvo, alcunha dada pelos adeptos colombianos; o sueco Tomas Brolin, o pequeno génio louro que deslumbrou no Euro-92 e no Mundial-94, antes de um ocaso abrupto de carreira, que viria a terminar cedo aos 29 anos, dizem as más-línguas, com um problema de excesso de peso; ou ainda Gianfranco Zola, o pequeno aprendiz do Deus Maradona em Nápoles, um jogador deveras conhecido ao qual escuso de fazer grandes apresentações futebolísticas, mas fadado desde novo para grandes voos, como demonstra a particularidade extra-futebol de ter entrado quase ao acaso - em virtude de estar em Inglaterra num programa de intercâmbio de estudantes italianos durante o seu liceu - no fim do vídeo de "Total Eclipse of the Heart", o super hit de Bonnie Tyler, a Ágata americana.
O que é certo, é que naquela tarde, quem provocou um eclipse no meu coração, não foi Zola, mas sim o argentino Sensini, uma velha raposa do eixo da defesa, como a sua prolongada e titulada carreira ao mais alto nível veio a comprovar - era designado pela imprensa desportiva italiana por nonno ou avô em português - aqui na sua 5ª época em Itália, a primeira pelo Parma - então um habitué das lides europeias.
Bonomia, pode ser uma característica muito típica dos avôs, mas não foi o que Sensini não demonstrou a 15 minutos do fim. Canto da esquerda de Zola e cabeceamento para o fundo das redes de Neno. Golo. Gelei.
Sensini, que aliás até podia/pode ser pessoalmente uma jóia de pessoa - acredito que a mãe dele diga isso, tal como a minha diz isso de mim - passou naquele instante a ser um ser ignóbil e desprezível [sentimento apenas poderia ser revertido na hipotética chance de vir a envergar o manto sagrada vermelho - outra das irracionalidades do futebol é que tudo o que é verdade hoje, pode já não o ser amanhã]. Era simplesmente o ser que tinha negado o acesso aquela super equipa de 94 - onde pontuavam ídolos de infância, como Isaías, uma força da natureza, que conhecido pela taxa de eficácia de remate de 1 em 10, tentava sempre efectuar os 10 remates por jogo; o raçudo Schwarz; o sempre vibrante e irreverente João Vieira Pinto; o desconcertante Paneira ou o jovem maestro Rui Costa só para citar alguns - a oportunidade de aceder à posteridade no já enorme Olimpo benfiquista - como se os 3-6 em Alvalade nessa época já não garantissem esse lugar.
A minha Nemésis foi acordada. E Custódio foi por um dia Sensini.
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