Porque há crónicas deliciosas.
Páginas das páginas
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1
Sensação de esquecimento, de ausência - o bode corre. De repente, volto ao mundo sem que nenhum movimento do mundo me tivesse solicitado. Sol brilhante, céu azul, tantos homens. O mesmo cansaço. Sinto que fiz uma pequena experiência de morrer.
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2
Repouso a cabeça no teu peito, ao som do mar descem as nuvens do céu para me cobrir. Nem um sofrimento mais! Um sono fecha-me as pálpebras, como se borboleta fosse, que dormisse.
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3
Quando chega a noite, bem noite, na casa os móveis dormem. Quando dormem os tapetes, os discos, as louças e os quadros na parede. Quando só o relógio e a geladeira elétrica trabalham e só as baratas tem vida, aí a mão, cheirando a cigarro, abre cansada, em qualquer página ainda em branco, o escondido diário...
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4
Não encontro outro descanso senão nos teus olhos. E não é a mocidade que eu vejo brilhando no fundo dos teus olhos de vinte anos - é a eternidade.
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5
Não sei se ela tão fina, tão penetrante, compreendeu a minha agonia. A tarde era opalina e eu me sentia transparente como a água azul da piscina que olhávamos. Pelas alegrias da vida pagamos tão caro, que não sei se seria melhor que fossemos sempre infelizes.
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6
Debussy derrama-se na sala como véu de luar. Os corpos se diluem, meu corpo deixa de existir, é impalpável, torna-se poeira de amor e compreensão das coisas impalpáveis e eternas.
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7
O corpo branco no domingo branco. O pensamento branco como página para escrever.
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Na praia
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I
Se o vento zumbe terrível (como agora sobre as salinas), não recriminemos o vento - ele desempenha o seu papel. Desempenhemos os nossos papéis. Eis tudo. Quantas vezes já não fomos ventos devastadores na vida das criaturas? Quantas ruínas já não deixamos atrás de nós?
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II
Como um gorgeio, através do tabique:
- Eu queria ser formiguinha para entrar no quarto deles e ouvir o que estão dizendo. Dizendo ou fazendo.
A outra moça ri.
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III
Eis uma coisa que Nicolau ainda não compreendeu - o céu pode ser realmente verde.
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IV
Era mansa, discreta e distraída.
(Comoção de um minuto ao vosso lado!)
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V
E o mancebo matou o dragão, casou-se com a filha do rei e viveu sempre pensando, com arrependimento, no dragão.
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VI
As limitações levantam-se como cercas de espinhos, boa parte delas gerada por nós próprios, servos inconscientes de obsoletos códigos.
A que heroísmos nos impulsionam! Em que depressões nos afundam!
Para as palpitações e dores nas pernas, a ciência, consultada sob a forma pouco sutil de Gasparini, responde: são estrepolias do vago.
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VII
Ela haveria de gostar desta solidão em que me afundei (o rio é largo e melancólico), solidão tão profunda que até me esqueci da cor dos seus cabelos. Há uma serenidade tão grande em tudo, que a alma da gente parece que se decanta, e, ao cabo desta semana que nos separa, sinto no fundo de mim uma grossa camada de lama que andava misturada com meus pensamentos e os meus atos.
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Pedaços da noite
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1
Através do vidro da mesa vejo meus pés nus, estou nu, no calor imenso. As veias estão no seu limite, diz o médico - nada de fumo.
Acendo outro cigarro, traço o meu uísque - vem um vento quente e afaga a pele como se fosse carícia de Aldina, perdida na juventude nua.
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2
A vitória do grande escritor consiste em nunca ter escrito. Promete uma novela, ora biográfica, ora fantástica, o herói ora sendo homem, ora sendo flor.
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3
Não guardo meus defeitos para a intimidade.
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4
Foi um baque surdo às seis horas da tarde chuviscando. O velho ficou estendido no asfalto como um saco mal cheio. O automóvel apagou as lanternas e sumiu.
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5
Neste último ano, a única pessoa que me empregou a palavra "estética" foi o meu barbeiro, a propósito de bigodes.
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6
O que mais temo: o total aniquilamento. Não pelo aniquilamento, mas pelo horror ao efêmero.
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7
Júlia no fim da linha, que é como o fim do mundo:
- Não vejo a tua carinha hoje?
Uma hora depois estava esticado na poltrona amarela. Gosto de ouvi-la, como se ouve uma cascata - vem uma frescura de ninfa em cada palavra mesmo pornográfica.
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8
A janela está aberta. E eu aflito para que venha no vento, que arrepia as cortinas, as olvidadas recordações de infância, cujo mistério nunca pode ser de todo desvendado, recordações de amor - noites de amor ardentes ou calmas - recordações dos perigos passados, a morte iminente! - recordações das mentiras e medos esquecidos.
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9
Nada está direito. A vida é insuportável. Mas devemos calar.
Marques Rabelo
Mais que uma crise de habitação
Há 4 horas
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