"Everything I know about morality and the obligations of men, I owe it to football"
Albert Camus
Há precisamente um século atrás, a 7 de Novembo de 1913, nascia na Algéria o autor desta frase.
Outrora um razoável guarda redes das camadas jovens do Racing Universitaire d’Alger – isto em idos da década de 30 – o bem conhecido Albert Camus tornou-se com a idade num excelente ensaísta, dramaturgo, filósofo, romancista, escritor, editor, tutor…Enfim um Katsouranis das letras.
Alguém que ganhou um Nobel da Literatura dado pela Academia Sueca.
Mas não embandeiremos muito o arco. Do país do IKEA era de esperar algo semelhante, isto duma instituição que um dia foi capaz de dar o prémio [muito bem atribuído] a um serralheiro-mecânico nascido na Golegã.
Mas regressemos a Albert Camus.
Alguém cujos escritos versaram muito sobre o absurdo. Politicamente alguém muito engajado. Primeiramente na forma de um socialismo científico que mais tarde desagua num pós anarquismo idealista, isto sem nunca se ter aprisionado pelo debate ideológico.
Amarrado ou condicionado por quer que seja.
Fosse no papel activo na emancipação contra a ocupação francesa do Magrebe. Fosse durante a Segunda Grande Guerra, militando na Resistência contra a ocupação nazi. Ou fosse ainda na sua resignação da UNESCO em 53, após a aceitação da Espanha de Franco na ONU, regime cuja violação sistemática dos direitos humanos era por si fortemente criticada.
Alguém de coluna idónea, fiel a valores e conceitos como o amor ao próximo, ética, pacifismo, justiça ou o humanismo.
Que rejeitava qualquer tipo de totalitarismo não interessa a proveniência ou tendências de pensamento único. Alguém com opinião. E mais importante, sem receio de a usar como a sua vida o comprova.
Ainda assim, alguém muito terra-a-terra, em muito devido às suas origens e às suas vivências de todo o seu percurso de vida.
Nesta altura, até pela temática, admito este texto pode parecer estranho a muitos dos que nos lêem.
Mas Camus era alguém que mantinha com o futebol uma dialéctica muito interessante. Vendo no mesmo uma analogia da sociedade e da vida em geral.
Algo que compartilho.
Daí esta minha homenagem. Daí este meu texto.
De homenagem a alguém que numa vez ao aterrar no Brasil para uma conferência universitária, fez o inusitado pedido de ir logo ver um jogo de futebol, isto numa época em que ao intelectual era difícil assumir – quanto mais aos outros reconhecer – a sua faceta de adepto de um desporto ou actividade conotada com as massas incultas, como era na altura considerado o jogo que tanto amamos.
O homem que uma vez na resposta a uma questão, disse que entre futebol e o teatro, escolheria sem dúvida o futebol. Sem desprimor para o primeiro.
Mas agradava-lhe o carácter popular e simples do segundo. Sem máscaras.
Pegando na citação inicial, Camus referiu uma vez numa entrevista à France Football, que tudo o que tinha aprendido na vida acerca de moral e as obrigações de um homem devia ao futebol.
De facto, se bem que à primeira vista esta frase possa parecer redutora, quem partilhou um balneário percebe o que Camus quereria dizer.
A camaradagem, a integração do individual no colectivo, o "fair play", a prossecução de um objectivo comum no meio de díspares personalidades, são tudo aspectos intrínsecos ao “beautiful game”. E porque não dizê-lo, também a uma sociedade.
E Camus ainda por cima era um guarda-redes.
Uma posição que poderá ser algo ingrata.
Em putos, há sempre a tendência para usarmos a posição para a qual são despejados aqueles que são desprovidos de algum jeito para jogar na frente. Ou que são gordos. E normalmente o gordo vai à baliza.
Mas à parte disto e não querendo despertar algum recalcamento contido em quem lê este texto, num outro contexto, se imaginarmos o onze que entra em campo como um grupo de heróis da Marvel, os guarda-redes serão os grande candidatos a serem os vilões incompreendidos [de repente tento esquecer-me que o Roberto poderá apenas ser a minha mais recente Nemésis...].
Isto porque tentam a todo o custo impedir o clímax do futebol ou seja o golo.
Na esmagadora maioria das vezes apenas são notados nestas alturas. E no coração dos adeptos passam rapidamente de bestas a bestiais à distância de uma luva. Ou de um golpe de asa. Daí a necessidade de grande concentração para tão específica posição. Que muitas vezes gera o inverso em termos de reconhecimento pelo seu esforço.
E todos sabemos que existe a tendência para haver sempre um bode-expiatório.
Jonathan Wilson, autor de um (bom) livro chamado “The Outsider: A History of the Goalkeeper“, estabelecendo um paralelismo óbvio, indica que em todas as sociedades, até os mais influentes fazedores de opinião arranjaram ou arranjam um bode-expiatório: Marx culpava o sistema capitalista. Freud culpava o impulso sexual. E Darwin a religião.
Por cá Vasco Pulido Valente culpa todo o mundo (e ele próprio quando se olha ao espelho).
Os futebolistas por seu turno culpam o guarda-redes.
Galeano escreveu sobre eles que podem ser chamados de porteiros ou guardiães, mas poderiam chamar-lhes de mártires ou penitentes, não crescendo mais relva no espaço em que pisam, condenados que estão a observar o jogo de longe.
Este autor vai até mais longe e indica que carregando nas costas o número um, são os primeiro a receber e os primeiro a pagar. Os guarda-redes terão sempre culpa e mesmo que não a tenham, arcarão sempre com a mesma.
Daí serem quase como que “outsiders”. Corpos estranhos num jogo tão belo. Alguém que destoa duma harmonia tão própria.
Mas talvez por actuar em tão específica posição, Camus tenha aprendido a observar toda esta dinâmica e harmonia de uma posição privilegiada, ou seja de trás, algo muito difícil aos restantes intervenientes em campo.
Talvez por isso tivesse tido a postura e a conduta que sempre o caracterizou. Alguém que politicamente (e transcrevendo uma publicação recente de Vitor Belanciano no Facebook sobre Camus) “não caiu na armadilha em que a maior parte das pessoas caem: ‘se não estás ao meu lado, estás contra mim’(…) tendo a lucidez de não cair na armadilha de escolher entre o imperialismo de um ou de outros, tentando superar as clivagens políticas tradicionais.”
Ou seja, um verdadeiro espírito livre. Fiel mais que tudo à sua conduta e aos seus princípios.
Algo inerente a alguém a quem é permitido não se reger por sistemas tácticos rígidos. Que tem os seus próprios posicionamentos específicos em campo. Os seus próprios ritos e rituais. Porque o guarda-redes acaba por ser a última barreira de segurança, de quem tudo pode depender, ainda que esteja na mais desprotegida das posições.
Paradoxo não é?
Mas ao mesmo tempo esta será aquela posição que permitirá mais solidão e introspecção pessoal aos seus ocupantes.
Daí não ser descabido ter havido nomes como o já referido Camus mas também Karol Wojtyla ou mesmo Vladimir Nabokov, tudo personalidade reconhecidas pela sua vincada independência em tão ingrata posição de campo, isto quando praticantes da modalidade.
Talvez estarei a extrapolar um pouco e certamente não espero nenhum vulto extraordinário para além dos feitos desportivos de um comum guarda-redes – digamos de um Rui Patrício (nem sequer uma entrevista interessante, quando mais algo…).
Mas olhando ao exemplo particular de Camus, gosto de pensar que o futebol, enquanto pequeno microcosmos representativo da sociedade poderá porventura despertar e incentivar nos seus intervenientes e naqueles que o rodeiam e seguem, ainda que em pequena escala, este tipo de sentimentos.
Mesmo se na maioria das vezes o futebol seja o domínio do irracional.
Mas muitas vezes a vida ensina-nos que não podemos ser iguais a mais um jogador de campo.
Por vezes temos de assumir a posição de guarda-redes.
Por muito difícil e confuso que isso possa parecer.
Outrora um razoável guarda redes das camadas jovens do Racing Universitaire d’Alger – isto em idos da década de 30 – o bem conhecido Albert Camus tornou-se com a idade num excelente ensaísta, dramaturgo, filósofo, romancista, escritor, editor, tutor…Enfim um Katsouranis das letras.
Alguém que ganhou um Nobel da Literatura dado pela Academia Sueca.
Mas não embandeiremos muito o arco. Do país do IKEA era de esperar algo semelhante, isto duma instituição que um dia foi capaz de dar o prémio [muito bem atribuído] a um serralheiro-mecânico nascido na Golegã.
Mas regressemos a Albert Camus.
Alguém cujos escritos versaram muito sobre o absurdo. Politicamente alguém muito engajado. Primeiramente na forma de um socialismo científico que mais tarde desagua num pós anarquismo idealista, isto sem nunca se ter aprisionado pelo debate ideológico.
Amarrado ou condicionado por quer que seja.
Fosse no papel activo na emancipação contra a ocupação francesa do Magrebe. Fosse durante a Segunda Grande Guerra, militando na Resistência contra a ocupação nazi. Ou fosse ainda na sua resignação da UNESCO em 53, após a aceitação da Espanha de Franco na ONU, regime cuja violação sistemática dos direitos humanos era por si fortemente criticada.
Alguém de coluna idónea, fiel a valores e conceitos como o amor ao próximo, ética, pacifismo, justiça ou o humanismo.
Que rejeitava qualquer tipo de totalitarismo não interessa a proveniência ou tendências de pensamento único. Alguém com opinião. E mais importante, sem receio de a usar como a sua vida o comprova.
Ainda assim, alguém muito terra-a-terra, em muito devido às suas origens e às suas vivências de todo o seu percurso de vida.
Nesta altura, até pela temática, admito este texto pode parecer estranho a muitos dos que nos lêem.
Mas Camus era alguém que mantinha com o futebol uma dialéctica muito interessante. Vendo no mesmo uma analogia da sociedade e da vida em geral.
Algo que compartilho.
Daí esta minha homenagem. Daí este meu texto.
De homenagem a alguém que numa vez ao aterrar no Brasil para uma conferência universitária, fez o inusitado pedido de ir logo ver um jogo de futebol, isto numa época em que ao intelectual era difícil assumir – quanto mais aos outros reconhecer – a sua faceta de adepto de um desporto ou actividade conotada com as massas incultas, como era na altura considerado o jogo que tanto amamos.
O homem que uma vez na resposta a uma questão, disse que entre futebol e o teatro, escolheria sem dúvida o futebol. Sem desprimor para o primeiro.
Mas agradava-lhe o carácter popular e simples do segundo. Sem máscaras.
Camus no Racing Universitaire d'Alger |
De facto, se bem que à primeira vista esta frase possa parecer redutora, quem partilhou um balneário percebe o que Camus quereria dizer.
A camaradagem, a integração do individual no colectivo, o "fair play", a prossecução de um objectivo comum no meio de díspares personalidades, são tudo aspectos intrínsecos ao “beautiful game”. E porque não dizê-lo, também a uma sociedade.
E Camus ainda por cima era um guarda-redes.
Uma posição que poderá ser algo ingrata.
Em putos, há sempre a tendência para usarmos a posição para a qual são despejados aqueles que são desprovidos de algum jeito para jogar na frente. Ou que são gordos. E normalmente o gordo vai à baliza.
Mas à parte disto e não querendo despertar algum recalcamento contido em quem lê este texto, num outro contexto, se imaginarmos o onze que entra em campo como um grupo de heróis da Marvel, os guarda-redes serão os grande candidatos a serem os vilões incompreendidos [
Isto porque tentam a todo o custo impedir o clímax do futebol ou seja o golo.
Na esmagadora maioria das vezes apenas são notados nestas alturas. E no coração dos adeptos passam rapidamente de bestas a bestiais à distância de uma luva. Ou de um golpe de asa. Daí a necessidade de grande concentração para tão específica posição. Que muitas vezes gera o inverso em termos de reconhecimento pelo seu esforço.
E todos sabemos que existe a tendência para haver sempre um bode-expiatório.
Jonathan Wilson, autor de um (bom) livro chamado “The Outsider: A History of the Goalkeeper“, estabelecendo um paralelismo óbvio, indica que em todas as sociedades, até os mais influentes fazedores de opinião arranjaram ou arranjam um bode-expiatório: Marx culpava o sistema capitalista. Freud culpava o impulso sexual. E Darwin a religião.
Por cá Vasco Pulido Valente culpa todo o mundo (e ele próprio quando se olha ao espelho).
Os futebolistas por seu turno culpam o guarda-redes.
Galeano escreveu sobre eles que podem ser chamados de porteiros ou guardiães, mas poderiam chamar-lhes de mártires ou penitentes, não crescendo mais relva no espaço em que pisam, condenados que estão a observar o jogo de longe.
Este autor vai até mais longe e indica que carregando nas costas o número um, são os primeiro a receber e os primeiro a pagar. Os guarda-redes terão sempre culpa e mesmo que não a tenham, arcarão sempre com a mesma.
Daí serem quase como que “outsiders”. Corpos estranhos num jogo tão belo. Alguém que destoa duma harmonia tão própria.
Mas talvez por actuar em tão específica posição, Camus tenha aprendido a observar toda esta dinâmica e harmonia de uma posição privilegiada, ou seja de trás, algo muito difícil aos restantes intervenientes em campo.
Talvez por isso tivesse tido a postura e a conduta que sempre o caracterizou. Alguém que politicamente (e transcrevendo uma publicação recente de Vitor Belanciano no Facebook sobre Camus) “não caiu na armadilha em que a maior parte das pessoas caem: ‘se não estás ao meu lado, estás contra mim’(…) tendo a lucidez de não cair na armadilha de escolher entre o imperialismo de um ou de outros, tentando superar as clivagens políticas tradicionais.”
Ou seja, um verdadeiro espírito livre. Fiel mais que tudo à sua conduta e aos seus princípios.
Algo inerente a alguém a quem é permitido não se reger por sistemas tácticos rígidos. Que tem os seus próprios posicionamentos específicos em campo. Os seus próprios ritos e rituais. Porque o guarda-redes acaba por ser a última barreira de segurança, de quem tudo pode depender, ainda que esteja na mais desprotegida das posições.
Paradoxo não é?
Mas ao mesmo tempo esta será aquela posição que permitirá mais solidão e introspecção pessoal aos seus ocupantes.
Daí não ser descabido ter havido nomes como o já referido Camus mas também Karol Wojtyla ou mesmo Vladimir Nabokov, tudo personalidade reconhecidas pela sua vincada independência em tão ingrata posição de campo, isto quando praticantes da modalidade.
Talvez estarei a extrapolar um pouco e certamente não espero nenhum vulto extraordinário para além dos feitos desportivos de um comum guarda-redes – digamos de um Rui Patrício (nem sequer uma entrevista interessante, quando mais algo…).
Mas olhando ao exemplo particular de Camus, gosto de pensar que o futebol, enquanto pequeno microcosmos representativo da sociedade poderá porventura despertar e incentivar nos seus intervenientes e naqueles que o rodeiam e seguem, ainda que em pequena escala, este tipo de sentimentos.
Mesmo se na maioria das vezes o futebol seja o domínio do irracional.
Mas muitas vezes a vida ensina-nos que não podemos ser iguais a mais um jogador de campo.
Por vezes temos de assumir a posição de guarda-redes.
Por muito difícil e confuso que isso possa parecer.
(texto próprio publicado no FootyElegance por altura do centenário do nascimento de Albert Camus - 07-11-2013)
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