15 de Dezembro de 2001.
Antigo Estádio da Luz.
Recém-chegado à capital, com 18 anos ainda frescos,
finalmente assistia ao vivo ao meu primeiro derby.
Por sinal o último disputado naquele estádio ainda completo - antes do início
das demolições que ocorreriam no dia seguinte e decepariam parte da estrutura
da velha catedral, numa Luz efervescente a rebentar pelas costuras.
Aquele Benfica-Sporting do mergulho do Jardel.
Recordo com exactidão todos os momentos que rodearam esse acontecimento.
Desde a compra de bilhetes na "cadonga" por um preço muito acima
do normal, à energia electrizante que rodeou a entrada no estádio, o estar
emparedado a saltar num sector com muitas mais pessoas que o permitido, o
acreditar numa vitória indo da emoção do 2-0 à desilusão do 2-2 final, num jogo
com tudo desde expulsões a penaltis, o sentimento de revolta no final, a chuva
de pedras entre grupos de adeptos no túnel sobre a 2ª Circular ou o ficar à
espera da saída do autocarro do Sporting para mostrar um cachecol do AC Milan -
equipa que os tinha eliminado da Europa uns dias antes, e sentir que tinha
ganho o dia ao ver que o Hugo Viana tinha respondido a tal gesto com um
manguito (pese o excerto de porrada que apanhei no final da noite por estar no
sítio errado, à hora errada, provavelmente com as cores erradas...).
Bem vindos ao domínio do irracional.
Ao domínio da paixão. Exacerbada.
Do jogo no qual, não obstante a classificação à altura, não haverá
favoritos à partida. Porque é o Derby. Isso mesmo, escrito com letra maiúscula.
O clássico dos clássicos.
E tendo como breve amostra muitas mesas de matraquilhos em bares por esse
país fora, o jogo que mais paixões suscita em Portugal.
Eis o Derby da Capital. Da Segunda Circular. O Derby Eterno.
Tal como Caim e Abel, como dois irmãos fratricidas, nado e criados na mesma
cidade, porém de origens bem distintas, o choque entre dois emblemas obrigados
a coexistir e a partilhar um espaço em comum,
Se bem que ambos terão no entanto a noção, de que um não existiria ou teria
a mesma grandeza se não existisse o outro. Como um Yin e o Yang.
Um confronto que faz perceber o verdadeiro significado da palavra
rivalidade, um embate sem tréguas, despertando paixões não só na capital, como
mexendo efectivamente com todo o país e além-fronteiras.
Pese o domínio do futebol indígena tenha há muito rumado a Norte.
A história deste jogo remonta muito atrás. À própria origem dos clubes. Tal
como todos os grandes clássicos, há sempre um catalisador para toda esta
rivalidade.
O primeiro derby disputou-se há mais de 100 anos, mais precisamente a 1 de
Dezembro de 1907. No Campo da Quinta Nova, em Carcavelos, casa emprestada então
do Sport Lisboa - que um ano mais tarde se fundaria com o Grupo Sport Benfica,
formando o actual Sport Lisboa e Benfica.
O recém-formado Sporting Clube de Portugal apresentou em campo oito
jogadores que haviam abandonado o Sport Lisboa, "aliciados" ou
"em busca" (ler conforme cor clubística mais adequada)
"por" ou "de" melhores condições oferecidas pelo primeiro.
Bastou um campo próprio, existência de balneários e sanitários.
Para compor o ramalhete, um dos fundadores do Sport Lisboa, Cândido Rosa
Rodrigues (um dos irmãos Catatau"), agora com outras cores, foi o marcador
do primeiro tento da vitória do Sporting, selada na sequência de um auto-golo
infeliz marcado por Cosme Damião (grande impulsionador do Benfica durante o
primeiro quarto de século de vida - ainda hoje é o treinador com mais épocas ao
leme das águias com um total de 18 anos seguidos), perfazendo o resultado final
da de 1-2 - Corga marcaria o tento de honra do Sport Lisboa.
Isto sem antes e na sequência de uma forte chuva, o Sporting ter
interrompido o jogo e se ter retirado, apenas retornando sob a ameaça feita
pelo árbitro da partida de que poderia vir a perder o jogo caso não revertesse
essa sua decisão de abandono.
Duzentos e oitenta e nove jogos oficiais depois e neste sábado teremos mais
um embate entre as duas equipas.
O 290º desafio.
O saldo regista 127 triunfos para as águias, 104 dos leões e 58 igualdades.
Em termos de golos marcados, nova vantagem do Benfica com 493 golos marcados
contra 448 golos do adversário.
Números que alimentam este choque de titãs que atravessou décadas.
Uma partida com um confronto cultural e identitário bem definido. De um
lado um clube de matriz bem popular e transversal mais conotado com as classes
baixas. Do outro um clube mais aristocrático ligado aos sectores mais abastados
da sociedade.
Ainda hoje em dia, pese as bases de apoio sejam bem mais transversais e
misturadas, esta segmentação encontra-se enraizada no ADN do ideário
popular.
Um jogo que cresceu para além do conceito de simples jogo. Que criou mitos
e lendas em volta do mesmo, alimentando-se e retro-alimentando-se de tais
conceitos desde aquela tarde invernosa de Dezembro em 1907.
Numa vez li uma descrição interessante que ilustra bem o porquê deste jogo
ser tão especial.
Um "Benfica-Sporting" ou um "Sporting-Benfica" nunca
são meramente um "Benfica-Sporting" ou um
"Sporting-Benfica".
Serão sempre "aquele".
Tal como foi "aquele" do mergulho do Jardel.
"Aquele" da cabeçada de Luisão.
"Aquele" do brinco do Baptista.
"Aquele" dos sete a um.
"Aquele" em que o Scott Minto até marcou!
"Aquele" do "petardo" do Geovanni.
"Aquele" (triste) do very-light.
"Aquele" do beijo de Sabry.
"Aquele" do golaço do Lima (e da barbaridade de São
Gaitán).
"Aquele" do hat-trick do João Pinto.
Já vi e presenciei muitos derbys quer ao vivo, quer via televisão. Mas
recordo com especial carinho este último que referi.
"Aquele" do menino de ouro.
Em Maio de 1994, então com 11 anos, no meu rochedo natal, passei o jogo
todo estoicamente colado à frente de um televisor com um (agora velhinho)
cachecol erguido ao alto que um amigo lisboeta da minha irmã mais velha me
tinha oferecido no Natal anterior.
Levantei-o após o primeiro golo do Sporting e após o 3-6 final acreditava
que a minha acção tinha sido razão para tão desnivelado resultado - isto frente
a um dos melhores Sporting que tive memória de ver.
Tinha assistido a magia pura. Tinha realmente impelido os “meus” para a
vitória.
Na idade de todos os sonhos. Na idade em que ainda acalentava estar um dia
lá dentro do relvado.
Tinha assistido ao adicionar de mais um episódio mágico ao já extenso rol
de mitos e lendas que se criaram nos confrontos entre estas duas equipas.
Muitos dos meus companheiros que aqui escrevem poderão estar a discordar em
muitos destas linhas que aqui vos escrevo. Não os censuro.
Reconheço que um Porto-Benfica tem sido nos últimos anos muito forte em
termos de animosidade. E para muitos dos benfiquistas que estão fora de Lisboa
(e são imensos), esse será porventura o jogo que mais mexe com os mesmos. E concordo
que haverá certamente muitas histórias e o sentimento com que o jogo é vivido é
igualmente especial.
Eu próprio terei as minhas histórias.
Mas vivendo na capital (pese orgulhoso das minhas raízes insulares),
tomando a mesma como a "minha" cidade de facto (a minha “Grande
Alface”) é inegável que a carga que se sente com este derby é muito maior. Pelo
menos para os adeptos dos dois clubes em causa.
Porque o espaço de onde descendem os dois clubes é comum. Porque temos que
"levar com eles". E também "eles" existem em grande número.
Porque o "outro" faz inegavelmente parte do microcosmos desta grande
cidade.
Porque há uma electricidade especial no ar.
Um “je ne sais quois”.
Porque a uma semana anterior a um derby cheia de bazófia de ambos os lados,
a fronteira entre uma semana seguinte cheia de moral ou de depressão no
emprego, no tasco ou na rua a cruzar-se com o vizinho, poderá estar à distância
de uma vitória ou de uma derrota.
E isto só se depreende talvez depois de vivermos em Lisboa. De sentirmos
"in loco" um derby. Em
estádios que distam geograficamente a menos de 3.000 metros. Seja na nossa
casa. E ainda em maior escala fora de casa. Onde “dá pica”. Num sentimento
primário de sobrevivência. Onde o "nós contra eles" é mais que
válido. Onde todos os impropérios são mais que requeridos.
Se bem que isto é válido e comum, em maior ou menor escala, para todos os
outros derbys e clássicos que existem.
Alguém externo ao fenómeno tende a percepcionar o futebol como um simples
jogo. Como um fenómeno de massas que mexe com paixões, mas que ao fim ao cabo,
nada mais é que um jogo.
Nada mais errado. Há jogos envoltos numa aura que ultrapassam tudo isso.
Porque ao fim ao cabo são mais que um simples jogo. E um derby é isso mesmo.
Muito mais que um simples jogo.
E mesmo quase 20 anos depois, sou capaz de sair do estádio com um sorriso
pueril de lés a lés. Com a mesma crença daquela tarde Maio. Ou aquela
satisfação irracional daquela noite de Dezembro. Acreditando que com o meu
apoio levei a equipa à vitória. Ou que não os deixei de os confortar com esses
mesmos cânticos na derrota. Uma completa irracionalidade.
Rezam as escrituras que Deus (e para que não haja dúvidas, não estou a
falar de ninguém na tríade Eusébio, Rui Costa ou Aimar) na sequência da morte
de Abel por Caim deixou neste último uma marca física. Para que fosse visível a
todos a sua imperfeição.
O futebol moderno foi concebido pelos seus criadores como um jogo de "gentlemen" para "gentlemen" onde o respeito pelo
adversário imperaria acima de tudo.
Talvez o derby sirva para mostrar que até o futebol tem a sua marca de Caim.
E muita da beleza do mesmo advém disso.
(publicado em footyelegance.com - projecto que transpira paixão pelo jogo mais lindo, e que muito apraz ter sido convidada a colaborar. sempre acompanhado de uma lista musical apropriada. ver restantes textos em footyelegance.com/author/aires/)
(publicado em footyelegance.com - projecto que transpira paixão pelo jogo mais lindo, e que muito apraz ter sido convidada a colaborar. sempre acompanhado de uma lista musical apropriada. ver restantes textos em footyelegance.com/author/aires/)